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Com ou sem protesto em Copacabana, no próximo dia 25, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar se Jair Bolsonaro se tornará réu pela tentativa de golpe de Estado depois da sua derrota eleitoral. Há indícios de sobra sobre a articulação golpista: Bolsonaro reuniu-se e pressionou generais, autorizou plano de assassinato de Lula, sabia da carta com teor golpista assinada por oficiais do Exército, colaborou para a elaboração do decreto de estado de defesa – incluindo a prisão de Alexandre Moraes –, o plano do “Punhal Verde e Amarelo” foi impresso dentro do Palácio do Planalto, onde ele morava. Para a Polícia Federal (PF), ele “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios” do golpe. Está mais que claro que há materialidade para que Bolsonaro seja julgado pela acusação, algo inédito na nossa história.
Mas a arena em que o procedimento vai ocorrer é outra, bem diferente dos tribunais onde documentos, testemunhas e fatos ainda importam: a opinião conformada pelo digital. E, em boa parte desse mundo caótico, Bolsonaro é apenas vítima de perseguição política, tudo plano de uma grande conspiração que começou com a soltura “ilegal” de Lula pelo STF e, depois, da “fraude” eleitoral que roubou dele a reeleição, seguida pela campanha de censura de Moraes. Nesse mundo, tudo faz sentido.
É uma bobagem dizer que as Big Techs são aliadas a Bolsonaro e por isso sua defesa será impulsionada por Facebook, YouTube, Twitter/X etc. O que está acontecendo é algo mais sinistro. Desde a derrota de Donald Trump em 2020, o que está em jogo segue um plano traçado por ele: a estratégia é convencer todo mundo que já não existem fatos, apenas versões. E o abraço de morte de Mark Zuckerberg aponta exatamente para isso; também as redes sociais decidiram que a verdade não importa.
Já escrevi aqui algumas vezes sobre como, nos EUA, a narrativa de que houve fraude nas eleições de 2016 seguia sendo uma das linhas abertamente propaladas pelos republicanos. Aqui, justamente pelas pressões do STF, nossos bolsonaristas têm sido mais contidos. Em janeiro deste ano, durante sua fala na festa promovida por Steve Bannon depois da posse de Trump, Eduardo Bolsonaro, convidado de honra, passa por um momento revelador. No palco diante da galera MAGA, ele diz que as últimas eleições no Brasil e nos EUA foram “difíceis” e “todo mundo viu como foi”. Bannon pega o microfone e diz “as eleições foram roubadas deles”. Eduardo replica: “Talvez no Brasil você pode ser preso por dizer isso”.
A cena demonstra o enorme fosso sobre como a Justiça dos dois países lidou com a tentativa de golpe de Estado mediante campanhas de operações psicológicas e desinformação.
Com o mito de que a primeira emenda é totalizante – todo mundo pode falar toda coisa a qualquer hora –, um autoengano bem americano, a aposta de Trump, desde a derrota, foi manter intacto seu gaslighting e estabelecer que existem apenas a sua versão e a dos inimigos.
Ou seja: a nova fase da estratégia pretende matar o conceito de desinformação.
Além dos passos das plataformas para reduzir ao mínimo a moderação de conteúdo golpista, a estratégia passa por uma pressão consistente contra conhecidos acadêmicos que conceitualizaram, monitoraram e denunciaram a infestação de desinformação nas plataformas e sua relação direta com o modelo de negócio destas.
Primeiro foi a Universidade Harvard. Segundo a professora Joan Donovan, uma das maiores experts em desinformação e criadora do grupo de pesquisa Technology and Social Change (TaSC), ela foi paulatinamente sendo pressionada para fora da universidade por pressão de um executivo do Facebook que seria próximo da direção da Kennedy School, onde ela trabalhava. Sua saída levou ao fechamento do proeminente grupo de pesquisa um ano antes das eleições presidenciais.
Depois, meses antes do pleito, foi a vez de a Universidade Stanford fechar o Stanford Internet Observatory, outro dos principais centros de pesquisa sobre desinformação. Em junho do ano passado, o projeto Election Integrity Partnership foi encerrado depois de uma enxurrada de processos judiciais, ataques online contra os pesquisadores e uma campanha do congressista republicano Jim Jordan, que assolou a equipe com investigações, acusando-os de violar a Primeira Emenda da Constituição americana.
Aqui no Brasil, o NetLab, Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liderado pela professora Marie Santini, tem recebido ataques semelhantes de congressistas.
O passo seguinte foi a exposição dos financiamentos da Usaid para jornalismo por Elon Musk e alguns cães de guarda como “financiamento à censura” – um deles, Mike Benz, chegou ao absurdo de dizer que, se não fosse financiamento da Usaid, Bolsonaro seria ainda presidente do Brasil. Musk retuitou. Essa campanha pretende não só acabar com o financiamento da Usaid, mas assustar todas as demais fundações que financiam estudos sobre o fenômeno da desinformação.
(Não sei dizer o quanto funciona, porque nesta coluna eu escrevo sobre o tema com apoio dos leitores – aliás, se você gosta deste espaço, faça um Pix para contato@apublica.org, pois nem o Tio Sam nem George Soros virão em nosso socorro.)
Com uma linha direta na Casa Branca, a versão made in USA sobre como manter viva a narrativa golpista tem se fortalecido por aqui, em que pesem as reduzidas manifestações de domingo. Afinal, por mais que os números sejam mais de 20 vezes inferiores à expectativa – a PM do Rio anunciou que havia 400 mil pessoas em Copacabana, um estudo do centro Monitor do Debate Político do Cebrap demonstrou que foram 18 mil –, ainda assim, sejamos francos, 20 mil pessoas exigindo a anistia a quem tramou um golpe de Estado com militares e assassinatos planejados no papel é gente pra caramba.
Então o STF vai ter que suar para convencer os brasileiros de que não se trata apenas de corroborar uma das versões sobre o que aconteceu, já que a outra narrativa segue viva e sendo propagada à larga no mundo online, com a bênção das plataformas. Fariam bem os ministros se reforçarem nas suas decisões os fatos concretos que provam os dedinhos de Bolsonaro em vez de se perderem em adjetivos que podem, sempre, ser usados em “cortes” a rodar pelas redes. A nova realidade da comunicação também impacta a Suprema Corte.
E importante: os ministros terão ainda que considerar que seu público, hoje, se estende até a Casa Branca.
Como já escrevi aqui, o caminho escolhido por Trump para retaliar o caso contra Bolsonaro foi fora dos canais diplomáticos, através de um processo civil em Miami. A reação, portanto, via tarifas, não deve vir agora. Talvez Trump esteja apenas guardando sua maior arma para a votação que realmente ataca frontalmente o bolso das Big Techs – o artigo 16 do Marco Civil da Internet, que garante que elas não são responsáveis pelo que se publica em suas plataformas. O processo está em pedido de vista, mas o julgamento deve ser retomado depois de maio deste ano. Trump e seus tecno-oligarcas estarão assistindo proximamente.
Tudo o que eles (e os bolsonaristas) não querem é que o Supremo convença a população de que a verdade importa.