O papa Francisco, ao professar sobre a importância de combatermos o colapso climático global, o fez nos colocando diante de um imperativo moral. A crise do clima é também uma crise social, compartilhada entre todos os habitantes deste planetinha.
“O clima é um bem comum, de todos e para todos”, escreveu na Laudato Si’, primeira encíclica papal a tratar das mudanças climáticas, um documento raro em seu alcance e coragem, que rompeu as paredes da Igreja e falou diretamente ao mundo – católico e não-católico. “Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos”, afirmou.
Lançada em maio de 2015, dois anos após Francisco iniciar o pontificado e alguns meses antes da Conferência do Clima da ONU de Paris, cúpula que entregou ao mundo o Acordo de Paris, a encíclica articula um chamado que vai além da fé ao denunciar de modo lúcido a lógica que nos trouxe até aqui.
“A mudança climática é um problema global com graves dimensões ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas”, escreveu. Para Francisco, não se trata apenas de ciência ou diplomacia: trata-se de justiça. De moral. De reconhecer que o que está em jogo não é apenas o planeta, mas a dignidade das pessoas que nele vivem.
Não à toa, portanto, que o documento foi muito aguardado também por ambientalistas e cientistas, que viram no papa um aliado insuspeito. Na época do lançamento da Laudato Si’ eu estava encerrando um período de estudos nos Estados Unidos e tinha ficado impressionada como, nos meses anteriores, tinha ouvido, de gente que eu jamais imaginaria, uma certa empolgação e expectativa pela mensagem papal. Já se sabia que ela teria como foco a crise ambiental e climática.
“Quão bizarro é ter os cientistas mal podendo conter a ansiedade por um pronunciamento papal sobre uma questão que concerne à ciência, à cultura e à sociedade?”, me disse Naomi Oreskes, historiadora da ciência da Universidade Harvard. A pesquisadora desvendou e denunciou o mecanismo de negacionismo climático promovido pela indústria de combustíveis fósseis nos Estados Unidos com a ajuda de meia dúzia de cientistas mal intencionados. A entrevista foi publicada no Estadão, onde eu trabalhava na época.
“Cientistas são cientistas e eles não sabem como falar sobre questões culturais e morais. Não são treinados para fazer isso, não se sentem confortáveis fazendo isso. Eles falam em termos científicos: quantos graus celsius de aquecimento, quantos milímetros por década de aumento do nível do mar, mas isso não é uma maneira de falar ao coração das pessoas, de colocar o problema de uma maneira pessoal, emocional, econômica e social”, argumentou Oreskes.
“O que o papa está fazendo vai muito além disso, porque ele está colocando em termos morais ao dizer que o que está acontecendo é uma injustiça. É algo que os cientistas não conseguem dizer, mesmo eles sabendo isso e seja algo com o qual eles se preocupam. E agora eles têm o papa para falar nesses termos”, complementou.
Oreskes depois assinaria a introdução da versão em livro da encíclica, que chegou às livrarias americanas alguns meses depois. No texto ela afirma: “A essência da crítica (feita pelo papa) é que nossa situação não é um acidente – é a consequência da forma como nós pensamos e agimos. Nós negamos as dimensões morais de nossas decisões e confundimos progresso com atividade. Nós não podemos continuar a pensar e agir desse jeito, desconsiderando tanto a natureza quanto a justiça, e esperar prosperar com isso. Não é só amoral, não é nem mesmo racional”.
Entre as muitas bandeiras que levantou como papa, o argentino foi incansável em levar a mensagem, para além da primeira encíclica, de que é uma obrigação moral combater essa crise que nós mesmos criamos e que afeta desproporcionalmente os mais pobres, os mais desassistidos e todas as outras criaturas.
Falando “ao coração”, desta vez principalmente dos religiosos, argumentava que cabe a nós não usufruir de modo desenfreado de sua criação, mas cuidar zelosamente dela para que continue existindo para nós mesmos e as próximas gerações.
A expectativa era que sua voz ecoasse onde os gráficos não conseguiam chegar. Ele trouxe emoção e propósito ao discurso técnico. Deu ao colapso climático um nome ético: pecado contra a criação.
Em outubro de 2023, talvez já um pouco menos paciente com o pouco avanço de governos e das diplomacias nas cúpulas climáticas (as COPs do clima da ONU), publicou a encíclica Laudate Deum – “a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática” – atualizando a carta de 2015.
“O mundo que nos acolhe está se esfarelando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura”, alertou. “Já não se pode duvidar da origem humana da mudança climática.” A linguagem era mais urgente, quase aflita. Francisco criticou abertamente o fracasso das COPs, o negacionismo travestido de pragmatismo e a lentidão dos governos. “Estamos ainda a tempo de reagir e mudar o rumo, mas o tempo está acabando”, disse.
Nesta segunda-feira (21), horas após o anúncio da morte de Francisco, Simon Stiel, secretário executivo da Convenção do Clima da ONU (UNFCCC), entidade que organiza as cúpulas do clima, como a que vai ocorrer neste ano em Belém (a COP30), reconheceu a força moral que o papa representou.
“O papa Francisco nos lembrou que não pode haver prosperidade compartilhada até que façamos as pazes com a natureza e protejamos os mais vulneráveis”, afirmou em mensagem enviada à imprensa. “Sua liderança reuniu as forças mais poderosas da fé e da ciência para apresentar verdades incontestáveis, destacando os custos da crise climática para bilhões de pessoas”, complementou.
Stiell reconhece no papa um tipo de liderança que o mundo político abandonou: aquela que fala com convicção, mesmo quando ninguém quer ouvir. Uma voz incômoda que lembra: “não existe prosperidade compartilhada sem paz com a natureza e proteção aos mais vulneráveis”, disse o diplomata.
“Humanidade é comunidade. E quando uma comunidade é abandonada — à pobreza, à fome, aos desastres climáticos e à injustiça — toda a humanidade é diminuída, material e moralmente, em igual medida”, resumiu.
Francisco deixou uma lição, de que é preciso recuperar o senso de pertencimento. A consciência de que não somos donos da Terra — mas parte dela.