Autorizações de supressão de vegetação secundária – um tipo de licença concedida para áreas previamente desmatadas, em que o mato voltou a crescer, como para uma limpeza de pasto, por exemplo – estão sendo concedidas por municípios do Pará para liberar cortes de vegetação nativa em áreas privadas. A prática mascara e dá um verniz de legalidade a um desmatamento ilegal.
É o que revela uma análise feita pelo Center for Climate Crime Analysis (CCCA), organização que trabalha com análise de dados para investigar crimes ambientais e prejudiciais ao clima do planeta. O levantamento, compartilhado com exclusividade com a Agência Pública, embasou uma representação enviada pelo Observatório do Código Florestal em parceria com o CCCA nesta sexta-feira (25) à 4ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF), responsável por Meio Ambiente e Patrimônio Cultural.
O documento aponta que a delegação do estado para os municípios para a expedição dessas autorizações “têm resultado em práticas irregulares e na falta de transparência, comprometendo os mecanismos de fiscalização ambiental e a observância dos marcos legais estabelecidos.”
O Pará, que vai receber neste ano a 30ª Conferência do Clima da ONU (a COP30), é o estado que lidera há anos o desmatamento da Amazônia – principal fonte de emissão de gases de efeito estufa do Brasil.
A perda de vegetação do bioma é, historicamente, responsável por cerca de metade das emissões do país. E o Pará, justamente por causa do desmatamento, lidera o ranking de emissões entre os estados. O Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030.
Pela lei 12.651/12, que reformou o Código Florestal, esse tipo de licença para limpeza de pasto só pode ser fornecida para áreas que ou foram desmatadas antes de 2008 – ou, se depois disso, para manutenção de desmatamentos ocorridos de modo legal, com autorização do órgão ambiental (em geral, isso cabe aos estados).
O que a análise do CCCA observou, em seis estudos de caso, é que as áreas estavam de pé até o marco temporal estabelecido pelo Código Florestal, ou seja, ainda eram vegetação primária em 2008. Mas, ao receberem a Autorização de Supressão de Vegetação Secundária (ASVS) pelos municípios – de modo irregular, já que as áreas ainda eram de floresta em pé –, acabaram sendo realmente desmatadas, o que configura uma ilegalidade dupla.
A descoberta preocupa porque, apesar de serem poucos casos dentro de uma amostra também pequena (de 34 casos), eles sinalizam uma falta de controle da concessão desse tipo de licença. E ilustram uma preocupação que já havia sido levantada por promotores da área ambiental.
Os pesquisadores Rodolfo Gadelha, analista de dados e líder da pesquisa, Flávia Vieira, analista jurídica, e Bruno Morais, diretor do Programa Brasil do CCCA, alertam que esses casos podem ser só a ponta do iceberg de uma estratégia sendo adotada no campo com o auxílio dos governos municipais.
A investigação teve como origem um caso que vinha sendo investigado pelo MPF dentro do projeto Amazônia Protege, que busca responsabilizar quem desmata ilegalmente. Os promotores atuam sobre desmatamentos identificados pelo sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que fornece a taxa oficial de desmatamento da Amazônia.
Durante a tramitação do processo, a defesa de um dos acusados alegou que a área desmatada pela qual ele estava sendo investigado estaria em conformidade com a legislação ambiental porque tinha recebido uma ASVS municipal. A licença, de acordo com o advogado, justificaria o desmatamento realizado no imóvel rural. Isso levou o promotor do caso a pedir auxílio de um técnico do CCCA para avaliar, com imagens de satélite, o histórico, ano a ano, da situação da vegetação da propriedade.
A mesma argumentação apareceria, depois, na defesa de outros três casos de Ações Civis Públicas (ACP) do Amazônia Protege, levantando a suspeita, entre promotores e a equipe do CCCA, de que isso pudesse ser uma estratégia que estivesse sendo usada para “lavar” casos de desmatamento ilegal. Um dos casos era em Paragominas e os outros três em Ulianópolis.
Verificar se essa é uma prática mais disseminada, no entanto, não é tão simples. Há pouca ou nenhuma transparência sobre quantas licenças municipais desse tipo estão sendo concedidas ou se elas estão seguindo o rito da legislação, como observam os pesquisadores. Não existe uma plataforma integrada online do estado onde as ASVS fiquem disponíveis para consulta, por exemplo. Nem os sites das prefeituras dão visibilidade para o que é emitido.
Foi o que levou a equipe a solicitar, via Lei de Acesso à Informação (LAI), para vários municípios do Pará, que disponibilizassem as ASVS concedidas por eles nos últimos anos. A reportagem da Pública ajudou neste pedido. A resposta, porém, só deixou ainda mais evidente o quão obscuro é esse sistema.
Foram enviados pedidos para Altamira, Dom Eliseu, Novo Progresso, Paragominas, Santarém, São Félix do Xingu e Ulianópolis – cidades que estão entre as mais desmatadas do Pará. Somente Santarém atendeu ao pedido, respondendo com 30 ASVS emitidas desde 2022.
“Alguns nem sequer responderam; outros não enviaram as autorizações solicitadas, alegando diversos motivos, como processos armazenados em arquivos físicos, quadro reduzido de servidores, até mesmo falta de acesso aos dados de gestões anteriores”, apontam os pesquisadores do CCCA no relatório que serviu de base para a petição encaminhada ao MPF.
Para fins da análise, então, foram considerados esses 30 casos de Santarém, além dos quatro que eram alvo de Ação Civil Pública (ACP) por parte da promotoria. Em seis (dois de Santarém e os quatro já investigados) foram encontrados indícios de irregularidades no processo.
O que diz a lei e como os casos analisados contrariam a legislação
O Código Florestal prevê a possibilidade de desmatamento legal no Brasil. No caso da Amazônia, onde se encontram os casos investigados pelo estudo da CCCA, até 20% da vegetação da propriedade pode, por lei, ser suprimida – mas desde que seja concedida uma licença por parte do órgão ambiental. O resto é considerado Reserva Legal e tem de ser preservado.
É a chamada Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), de responsabilidade dos estados, que leva em conta, por exemplo, se a propriedade não desmatou mais do que a lei permite, se tem passivos ambientais, se tem áreas embargadas. E estabelece, também, medidas de compensação florestal adequadas.
No Pará, de acordo com levantamento do MapBiomas, somente 0,77% das áreas desmatadas entre 2019 e 2023 receberam autorização. E se a ASV é emitida sem respeitar esses requisitos mínimos, continua se tratando de um desmatamento com indícios de ilegalidade.
A lei também prevê a possibilidade de de um segundo tipo de supressão de vegetação, que é a secundária (ASVS), o alvo do estudo da CCCA. Essa licença só pode ser dada em duas condições: 1) para os casos de áreas desmastadas antes de julho de 2008 (mesmo que de modo ilegal, esses desmatamentos foram anistiados pela lei 12.651/12) em que haja um uso econômico consolidado, como uma pastagem ou agricultura, por exemplo; 2) a propriedade recebeu, do estado, uma ASV primária após julho de 2008 e, posteriormente é pedida uma ASVS (nesse caso o primeiro desmatamento foi legal – a condição, porém, é rara na Amazônia).
A lei permite que esse tipo de licença, considerada mais simples, possa ser concedida também pelos municípios, mas, para isso, é preciso, primeiro, que o estado delegue a tarefa para as cidades. E, segundo, que haja algum tipo de monitoramento do que está sendo executado pelas esferas municipais.
O que a análise mostrou é que os seis casos não se enquadravam em nenhuma das condições que permitiriam o recebimento de uma ASVS. Imagens de satélite de todos eles revelam “evidências de desmatamento após 2008”.
“Portanto, as autorizações de supressão vegetal secundária e as licenças ambientais rurais concedidas para estas áreas não deveriam ter sido emitidas pela esfera municipal, dado que contrariam os requisitos legais. Com efeito, tais ASVS aqui constatadas acobertam eventuais desmatamentos ilegais, o que tem dificultado os mecanismos de controle e responsabilização”, aponta o relatório.
Um dos casos, em Santarém, é de uma propriedade de 202 hectares que declarou, no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que antes de 2008 tinha um remanescente de vegetação nativa de 34,6% (70 hectares). Uma parcela já bem inferior do que deveria ser pela lei, de 80% de Reserva Legal, mas que, de todo modo, passou a ser considerada a RL do imóvel, ou seja, não poderia ser desmatada.
Imagens de satélite consultadas pela equipe do CCCA revelam que havia uma outra área menor de vegetação nativa remanescente na propriedade, mas que não foi incluída no CAR como sendo RL.
Foi justamente sobre esta área menor que, em 2022, o imóvel obteve da prefeitura uma ASVS. Pelo satélite é possível ver que em 1996, em 2007 e em dezembro de 2008 a floresta estava de pé neste trecho, com características de vegetação primária. Em agosto de 2023, porém, ela já tinha ido abaixo, como mostra a figura abaixo.
O sistema Prodes, do Inpe, computou aquele corte no desmatamento daquele ano. “Essa área não poderia ser objeto de autorização para supressão ou limpeza, pois ela não está sobre desmatamento anterior a 2008”, aponta o relatório.
O outro caso de Santarém com indícios de irregularidade detalhado no levantamento apresentou um quadro bastante similar. A vegetação remanescente declarada no CAR estava em estágio bem conservado até julho de 2008. Em março de 2023, o proprietário pede uma ASVS sobreposta a área de cobertura florestal. Em agosto, a vegetação já havia sido removida.
Em Paragominas, o desmatamento investigado pelo Amazônia Protege teve algumas características um pouco diferentes. Pela análise das imagens de satélite, é possível notar que a área de vegetação remanescente na propriedade que recebeu uma ASVS tinha sofrido queimadas em 1997 e em 2008, mas nunca foi exatamente desmatada (o chamado corte raso, em que o solo fica exposto), nem convertida para atividades agrossilvipastoris.
“Portanto, a área desmatada que gerou a ACP não deveria obter autorização do órgão municipal de meio ambiente para a supressão e limpeza”, afirmam os pesquisadores.
Uma situação parecida ocorreu em um dos imóveis de Ulianópolis que era alvo de Ação Civil Pública pelo Amazônia Protege. “A análise histórica das imagens de satélite desde 1996 até 2008 mostra que a área da ACP e a área consolidada reportada estão localizadas em uma região que sofreu queimadas em 1998 e 2006. No entanto, essas perturbações na vegetação primária típicas de queimadas não apresentam características de corte raso (solo exposto), ou de uso do solo para sistemas agrossilvopastoris, o que sugere que a área não deveria ter sido classificada como ‘área rural consolidada’ e desmatada”, indica o relatório.
A equipe do CCCA frisa que, “ainda que seja possível identificar perturbações ou intervenções na vegetação primária características de degradação florestal por exploração madeireira ou mesmo ocorrência de fogo na vegetação, não se trata de desmatamento” – de modo que não poderiam ser concedidas ASVS para esses casos.
O fato de as regiões terem sido afetadas pelo fogo ser usado como argumento de que ali já era terra devastada, então poderia acabar de ser desmatada, preocupa os pesquisadores, visto que as queimadas têm se intensificado na Amazônia nos últimos anos.
O próprio Ministério do Meio Ambiente começou a trabalhar com a hipótese de que estaria em jogo uma nova estratégia de grilagem, se valendo da devastação do fogo para ocupar ilegalmente a floresta. Isso vale, claro, para as florestas públicas. Mas a tentativa de “legalizar” desmatamento ilegal dentro de propriedade privada também chama atenção.
Autorizações de supressão estão na mira do STF e do MPF
A situação revelada pela análise do CCCA é mais um exemplo de um problema mais amplo que tem ocorrido com as autorizações de supressão de vegetação (ASV) em todo o país, tanto para vegetação primária quanto secundária. Isso começou a ficar evidente no Cerrado, bioma que apresentou uma forte alta de desmatamento nos últimos anos – e cerca de metade dos cortes era, “aparentemente legal”, já que tinha recebido a licença.
Investigações começaram a revelar, porém, que há uma série de irregularidades e, até ilegalidades, nesses processos, de modo que a maior parte delas não poderia ter sido concedida. Em junho do ano passado, a Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), publicou uma nota técnica alertando que essas falhas no licenciamento ameaçam o próprio combate ao desmatamento no país.
“Nos casos que a gente analisou, verificamos que os órgãos estaduais, que concedem as autorizações, não vinham observando requisitos básicos previstos na Lei Nacional de Vegetação Nativa (a 12.651/12)”, disse à Pública, o presidente da Abrampa, o promotor Alexandre Gaio.
Segundo ele, não era verificado, por exemplo, se o imóvel rural que pede a supressão tem espécies ameaçadas de extinção, o que exige a realização de um inventário florestal da área, com um profissional habilitado que possa fazer a avaliação.
“Outro requisito é saber se aquele imóvel tem alguma área que já teve a vegetação suprimida, mas agora está sem uso. Um dos requisitos da lei é não permitir o desmatamento de novas áreas se você tem áreas que podem ser utilizadas que estão ociosas”, explica Gaio.
Entre as irregularidades, a Abrampa também observou que os registros dos proprietários no CAR não eram devidamente analisados pelos órgãos ambientais antes da concessão da ASV. Como o cadastro é auto-declaratório, ou seja, cabe ao proprietário dizer quanto da sua propriedade é agricultura, por exemplo, e quanto é Reserva Legal e Área de Preservação Permanente (APP), outra exigência do Código Florestal, é preciso checar se ele está em conformidade com a lei. Quem teve desmatamento ilegal e não se regularizou não pode receber autorização de novos cortes, mesmo que haja área passível para isso na propriedade.
“Sem olhar o imóvel como um todo, sem checar como está a Reserva Legal, sem saber onde estão as matas ciliares, não tem como definir o que pode ser suprimido. O que notamos, porém, é que tem muita autorização sendo dada automaticamente, sem qualquer análise, sem qualquer exigência”, afirma Gaio. Para o promotor, parte importante do problema é os estados terem delegado aos municípios a concessão das licenças sem garantir que eles teriam condições de atuar dentro do que prevê a legislação.
O “descontrole”, como foi definido pela Abrampa, motivou o ministro do STF Flávio Dino a determinar, no início deste ano, que estados da Amazônia e do Pantanal reavaliassem os casos em que houve delegação dessas tarefas aos municípios e que, mesmo se entendessem que as cidades podem continuar a fazer esse trabalho, que todas as emissões de ASV fossem registradas no Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor).
No caso das ASVS investigado pelo CCCA, o diagnóstico é parecido. Falta transparência sobre o que está acontecendo nos municípios – o que ficou evidente, inclusive, durante a tentativa de levantamento de dados. Poucos casos puderam ser investigados porque os municípios simplesmente não forneceram informações. Nenhum deles está cadastrando suas ASVS no Sinaflor, como estabelecido por Dino.
“O que está acontecendo nos municípios, ninguém sabe, ninguém viu. Essas autorizações não estão no Sinaflor, não há transparência, não há acesso à informação. Então o que vimos nesses casos pode ser só a ponta do iceberg. É um indício de que, no mínimo, a troca de informação entre município e estado não está funcionando”, disse à Pública Marcelo Elvira, secretário-executivo do Observatório do Código Florestal, que encaminhou a representação com os casos para a 4ª Câmara do MPF.
O documento pede que o MPF investigue esse tipo de irregularidade de modo mais amplo no estado e recomende “a adoção de medidas corretivas que assegurem a transparência ativa e passiva no processo de concessão dessas autorizações”. Também solicita que, caso confirmada a “prática de atos administrativos irregulares ou ilegais na concessão das ASVs”, que elas sejam anuladas e os agentes públicos sejam responsabilizados.
Outro lado
Procurados pela reportagem, nenhum dos proprietários das terras com suspeita de irregularidade responderam aos pedidos de entrevista. Os municípios de Ulianópolis e de Paragominas também não se manifestaram.
A prefeitura de Santarém disse que o CAR dos imóveis analisados pelo estudo foram devidamente analisados e que “não foram identificadas irregularidades nos processos de licenciamento e na autorização de supressão de vegetação”.
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), do Pará, enviou uma nota afirmando que “cumpre o Código Florestal fazendo o controle da origem florestal e das respectivas autorizações em sistema próprio integrado ao sistema de dados federal (Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais – Sinaflor)”.
Disse também que “não tem convênio de delegação outorgando que municípios podem emitir supressão de floresta primária em imóveis rurais” e disse que “a conduta deve ser apurada com o próprio município, que deve responder pelos seus atos”. Mas quando questionado especificamente sobre as autorizações de supressão de vegetação secundária concedidas pelos municípios do estado, o órgão não respondeu à reportagem.
A pasta afirmou ainda que “faz o controle dos imóveis rurais com ações de monitoramento remoto e fiscalização do desmatamento em campo, independente de quem emite ato administrativo”.