Depois de uma longa sessão que durou mais de seis horas, o clima no auditório do Superior Tribunal Militar (STM) em Brasília era de congratulações. Ministros vieram apertar as mãos do advogado Rodrigo Roca, que defende os militares que mataram o músico Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo em 7 de abril de 2019.
A defesa saiu com uma enorme vitória da primeira audiência do caso na corte superior.
Para o ministro relator, os oito militares condenados em primeira instância a penas de prisão em regime fechado entre 28 e 31 anos devem ser absolvidos pela morte de Evaldo Rosa.
O tenente-brigadeiro-do-ar Carlos Augusto Amaral Oliveira afirmou que os soldados agiram em legítima defesa porque teriam trocado tiros com assaltantes no momento em que Evaldo foi atingido pelo primeiro tiro, que acertou a base de suas costas, na região lombar, próxima dos rins.
Naquela tarde, os militares tentaram impedir um assalto a mão armada na estrada do Caboatá, na região de Guadalupe, zona sul do Rio. Os assaltantes fugiram, e a patrulha atirou, em vez disso, no carro em que Evaldo Rosa e sua família se dirigiam a um chá de bebê.
Segundo o relator, o músico teria sido atingido num contexto de legítima defesa. “Infelizmente, durante o embate com os assaltantes, um dos projéteis atingiu o veículo do Sr. Evaldo Rosa, causando uma das lesões que pode ter o levado à morte naquele instante”, disse o ministro.
Depois do primeiro tiro, o carro parou diante de um prédio residencial e os soldados iniciaram uma segunda rajada, matando o catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentava ajudar Evaldo abrindo a porta do motorista.
No total, Evaldo recebeu nove tiros de fuzil.
Para chegar à conclusão, Carlos Augusto fez uma ginástica retórica. Para o ministro, Evaldo já estava falecido após o primeiro tiro, o que significa que condenar os militares pela segunda rajada seria um “crime impossível”, “já que o Sr. Evaldo estaria sem vida”.
Assim, ele decidiu contrariar o resultado do laudo produzido ao longo da investigação liderada pelo Ministério Público Militar (MPM). O laudo cadavérico atesta morte instantânea por hemorragia e laceração encefálica, o que condiz com um dos tiros da segunda rajada, que acertou sua cabeça quando o carro já estava parado.
Carlos Augusto do Amaral preferiu embasar sua decisão em duas testemunhas que dizem acreditar que o músico já estava morto quando o carro parou. “Não se deve atribuir um valor absoluto ao laudo policial contra as duas versões das vítimas do fato”, afirmou o ministro.
O MPM alega que não há nenhuma prova de que houve, de fato, troca de tiros, uma vez que a caminhonete Marruá onde iam os soldados não sofreu nenhum dano e não foram encontradas outras balas além das do Exército.
O que as perícias ajuntadas nos autos comprovam é que os soldados atiraram 257 vezes naquele dia e acertaram 62 tiros contra o carro de Evaldo.
O voto do ministro da mais alta corte militar foi recebido com surpresa pelo advogado de acusação que representa as viúvas de Evaldo e Luciano. “Eu realmente tinha muita confiança que o Superior Tribunal Militar fosse manter a decisão de primeira instância, uma vez que a prova é muito forte no sentido de que o que houve ali foi uma execução. Foram 257 tiros contra vítimas indefesas”, disse André Perecmanis.
Conforme revelou a Agência Pública na série Efeito Colateral, houve pelo menos 35 mortes de civis por militares entre 2010 e 2020. Nos casos que foram a julgamento pela Justiça Militar e nenhum dos perpetradores foi punido.
O caso de Evaldo Rosa foi o primeiro em que houve condenação na primeira instância – mas, conforme ficou claro no julgamento de ontem, isso pode ser revertido no STM.
Por que isso importa?
O duplo assassinato era o único caso de militares condenados por matarem civis durante operações de segurança pública no Rio de Janeiro. Agora, a corte suprema da Justiça Militar sinaliza que pode reverter a condenação sobre a morte de Evaldo e abrandar a pena em relação à de LucianoEm outros mais de 35 casos semelhantes de crimes de militares contra civis, a Justiça Militar foi leniente
Penas de 3 anos em regime aberto
O voto do ministro relator – que não foi compartilhado na íntegra com a imprensa – enfocou ainda a questão do dolo, ou seja, a intenção de matar Luciano Macedo, além do sogro de Evaldo Rosa, Sérgio Gonçalvez de Araújo, que só teve ferimentos leves porque se escondeu entre o painel e o banco do carona durante a segunda rajada de tiros.
“Não é crível que os apelantes tivessem saído de suas casas, do quartel onde serviam, com o propósito de ceifar a vida de civis, ou de praticar deliberadas chacinas”, disse o brigadeiro.
Ele abraçava, em parte, a principal tese apresentada pela defesa dos réus. O advogado Rodrigo Roca argumentou que não havia nenhuma outra postura possível por parte dos soldados, e instou os ministros a refletirem o que eles fariam se fossem vistos na mesma situação.
O Superior Tribunal Militar é composto por cinco juízes civis e dez militares da mais alta patente, sendo quatro do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica.
Momento do voto do ministro relator Carlos Augusto Amaral
O relator acatou parcialmente a tese da defesa de defesa putativa, ou seja, que os soldados acreditavam estar sob ameaça de traficantes. A tese ficou conhecida como “legítima defesa imaginária” ao ser usada na Justiça Militar para absolver militares que deixaram paraplégico o jovem Vitor Santiago durante a ocupação do Complexo da Maré, em 2015.
“É notório que os apelantes estavam sob forte tensão no dia do ocorrido”, disse o ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira.
O brigadeiro da Aeronáutica argumentou que a tese de autodefesa ilusória se sustentaria pelo fato de Luciano estar vestido sem camisa e de chinelo – com trajes semelhantes, portanto, a um dos assaltantes do carro – além do Ford Ka de Evaldo ser da mesma marca do carro dos assaltantes.
Outro motivo seria que Luciano teria tentado se proteger atrás da porta do carro, o que “reforça a tese de que Luciano representava uma ameaça imaginária aos apelantes ao se proteger por trás da porta do veículo, o qual possuía insulfilm nos vidros, podemos gerar a conclusão de que tornaria a utilizar a arma”.
Luciano estava desarmado.
O relator, no entanto, ressaltou que os soldados não seguiram as regras de engajamento, que determinam o uso da força progressiva e proporcional, atirando “somente na direção do agressor claramente identificado, utilizar força mínima e não matar”.
“Mesmo diante da tensão vivida naquele momento, pela experiência que possuíam, não poderiam se afastar da cautela de aguardar o momento da suposta ação agressora que imaginaram para reagir”, disse.
No final, o ministro relator decidiu que, em vez de manter a condenação por duplo homicídio qualificado e um homicídio tentado, os oito militares devem ser condenados apenas pelo homicídio culposo – sem intenção de matar. Quanto à tentativa de assassinato de Sérgio, ele sugeriu alterar para lesão corporal, cuja pena já teria caducado.
Para ele, apenas o tenente que comandava a unidade, Ítalo da Silva Nunes, deve receber pena ligeiramente maior, de 3 anos e 10 meses em regime aberto. Os demais militares devem receber penas de 3 anos e 2 meses em regime aberto.
No entanto, o brigadeiro-do-ar decidiu proteger Ítalo Nunes, em relação à exclusão das Forças Armadas. Pelo seu voto, todos os sete militares de patentes mais baixas devem ser excluídos, com exceção do tenente, que era o único oficial presente, de patente superior.
Segundo a defesa, por serem temporários, apenas 4 dos 11 militares envolvidos na morte seguem no Exército.
O ministro revisor, José Coelho Ferreira, acompanhou na íntegra o voto de Carlos Augusto Amaral Oliveira.
Após o voto, a ministra Elizabeth Rocha, única mulher a integrar o STM na história, pediu vista dos autos para formar sua decisão. Não há previsão de quando o julgamento será retomado.
“Os votos do relator e do revisor costumam ter muito peso, mas a doutora Maria Elizabeth é uma juíza togada, muito técnica, então a gente tem uma expectativa de que ela reverta esse entendimento e consiga trazer a solução para a solução realmente mais correta”, afirmou o advogado André Perecmanis.
Quem são os ministros que votaram pela absolvição pela morte de Evaldo Rosa
Carlos Augusto Amaral Oliveira, ministro relator – Nascido em 1960 no Rio de Janeiro, é bacharel em direito pela Universidade de Brasília e pós-graduado em análise de sistemas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Durante a gestão do ex-presidente Michel Temer, Oliveira assumiu o cargo de secretário-geral do Ministério da Defesa, indicado pelo então ministro Joaquim Silva e Luna. Posteriormente, em janeiro de 2019, após a posse do presidente Jair Bolsonaro, foi nomeado chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, consolidando sua posição de liderança nas Forças Armadas. Em 2020, foi indicado pelo então presidente Jair Bolsonaro para ocupar o cargo de ministro do Superior Tribunal Militar (STM).
José Coelho Ferreira, revisor – Nascido em 11 de abril de 1950 em Novo Oriente, Ceará, é vice-presidente do Superior Tribunal Militar (STM). Natural de Novo Oriente, no Ceará, formou-se em Direito pela Universidade de Brasília em 1973. Iniciou sua carreira como agente de polícia e, em seguida, ocupou diversos cargos jurídicos, incluindo assistente jurídico do DASP e procurador-geral do Banco Central do Brasil. Em agosto de 2001, foi indicado por Fernando Henrique Cardoso como ministro do STM, mas sua sabatina foi marcada por controvérsias devido a um parecer que assinou em 1992 inocentando Jader Barbalho de desvios de verba do banco estadual Banpará, que foram depois apontados pelo Ministério Público e por auditores fiscais do Banco Central.